sexta-feira, 2 de abril de 2010

Perto do Fim

Rana muscosa

Estamos diante de uma extinção em massa. Um fungo exótico desfecha o golpe fatal em anfíbios já ameaçados pela perda de seu habitat, pela poluição e pelas mudanças climáticas. Pesquisas e esforços de resgate talvez sejam a salvação para as espécies prestes a desaparecer.
Por Jennifer S. Holland. National Geographic Brasil-Edição 109.2009

Ele agarra a parceira, apertando-lhe o torso com as pernas dianteiras. Escanchada sob o peso dele, com o ventre repleto de ovos, ela está imersa no córrego raso. Ambos são rãs-arlequins de uma rara espécie Atelopus, ainda sem nome e encontradas apenas numa estreita área em forma de cunha no sopé dos Andes e na adjacente planície amazônica. A fêmea parece recém-pintada - um padrão negro sobre fundo amarelo; já seu lado inferior é de um vermelho intenso. Mas ela está morta.

Acima dessa cena, na borda de um despenhadeiro, um trator está parado, com o motor ligado em ponto morto. A abertura de uma estrada por ali, perto do vilarejo de Limón, no sudeste do Equador, fez despencar uma avalanche de pedras, galhos partidos e terra pela encosta, soterrando parte do córrego ladeado por árvores. Luis caminha com agilidade sobre as pedras soltas, avaliando os danos ao curso d'água. O herpetólogo de 47 anos veste uma camisa amarela com minúsculas rãs bordadas. Enfiando uma vareta no meio do entulho, ele comenta: "Acabaram com a casa da rã".

Rãs e sapos, salamandras e tritões, cobras-cegas vermiformes: todos fazem parte da classe Amphibia. São criaturas de sangue frio que se arrastam, pulam, escavam; que costumam aparecer em contos de fadas, pragas bíblicas, provérbios e rituais de bruxaria. Os europeus da Idade Média viam o próprio diabo nas rãs. Para os antigos egípcios, elas simbolizavam a vida e a fertilidade. E, para as crianças de todas as épocas, sempre proporcionaram uma introdução ao mundo da natureza. Já para os cientistas, elas constituem uma ordem que há mais de 300 milhões de anos está em evolução, diversificando-se em mais de 6 mil espécies tão belas e ameaçadas quanto qualquer outro animal sobre a face da Terra.

Os anfíbios estão entre os grupos mais atingidos pelas inúmeras pressões que hoje recaem sobre a fauna selvagem. Nada menos do que metade de todas as suas espécies está ameaçada. Centenas estão à beira da extinção, e dezenas foram aniquiladas. O declínio nas populações é rápido e generalizado e tem causas complexas - mesmo no despenhadeiro perto de Limón aquele trator é apenas um perigo entre outros. Mas nem toda a esperança está perdida. Esforços de resgate vão resguardar alguns animais até que passe a onda de extinção. E, pelo menos em laboratório, os cientistas já conseguiram curar rãs de uma doença fúngica que vem devastando populações em todo o planeta.
Rã-Dourada-Venenosa.
Phyllobates terribilis
No Zoológico Rolling Hills, em Salina, Kansas.
Até 47 MM - Colômbia - Ameaçada
Em Quito, Luis Coloma e seu colega Santiago Ron montaram um laboratório para reprodução de rãs em cativeiro no museu de zoologia da Pontificia Universidad Católica del Ecuador. Eles reconhecem que essa iniciativa de proporcionar um refúgio para algumas espécies na esperança de reduzir as perdas não passa de uma gota no oceano. O laboratório abriga apenas 16 espécies, embora só no Equador existam mais de 470. Apesar do intenso desmatamento no país, a cada ano são descobertas novas variedades. O laboratório de Coloma tem 60 espécies novas que ainda aguardam por seu nome científico.

Coloma e Ron, que também começaram a adquirir terras para a proteção dos hábitats, esperam ampliar as instalações para reprodução em cativeiro a fim de que possam abrigar uma centena de espécies. Mas o estoque de animais selvagens está diminuindo com rapidez. Ali onde os pesquisadores de campo tinham de tomar cuidado para não esmagar rãs que se deslocavam em migrações maciças, agora, quando deparam com uma dezena delas, já consideram isso uma vitória. "Estamos virando paleontólogos, descrevendo criaturas que já estão desaparecidas", diz Santiago Ron. No laboratório em Quito, os indícios dessa extinção se avolumam. Coloma tira um jarro de um armário repleto de amostras. Dois espécimes descorados flutuam no álcool. "Esta espécie", conta ele, com o rosto distorcido pelo vidro, "se extinguiu em minhas mãos."

Não admira que alguns considerem nossa época na Terra como um período de extinção em massa. A redução da biodiversidade alcançou níveis jamais vistos desde o fim do Cretáceo, há 65 milhões de anos. Todavia, os anfíbios conseguiram sobreviver aos surtos de mortandade no passado, mesmo quando 95% dos outros animais desapareceram, e também resistiram ao ocaso dos dinossauros. Se foram capazes de tal proeza antes, por que não agora? "

É uma morte provocada por muitos impactos", explica o biólogo David Wake, da Universidade da Califórnia, em Berkeley. A destruição de hábitats, a introdução de espécies exóticas, a exploração comercial e a poluição da água atuam em conjunto para dizimar os anfíbios do planeta. O papel das mudanças climáticas ainda é motivo de discussão, mas em algumas regiões dos Andes os cientistas registraram acentuado aumento das temperaturas no decorrer dos últimos 25 anos, assim como inusitados períodos de seca.

Um tipo de infecção fúngica, a quitridiomicose (ou quitrídia), é responsável pelo golpe decisivo. Foi a quitrídia que matou as rãs que acasalavam no córrego de Limón. Testes comprovaram a presença do fungo em ambos os animais e que o macho morreu logo depois da fêmea. A quitrídia começou a dizimar os anfíbios da Costa Rica nos anos 1980, embora ninguém tenha se dado conta na época. Foi somente em meados da década seguinte, quando as rãs passaram a morrer em grande número na Austrália e na América Central, que os cientistas descobriram que o fungo era o culpado. Ele ataca a queratina, proteína crucial na estrutura da pele e de partes da boca do animal, talvez impedindo a troca de oxigênio e o controle de água e sais no organismo. É bem possível que a disseminação do fungo tenha se dado por intermédio das rãs-albinas-africanas, exportadas para uso em testes de gravidez na década de 1930.

A presença da quitrídia foi confirmada em todos os continentes onde existem rãs (a exceção é a Antártica) e em nada menos do que 43 países. O fungo sobrevive em todas as regiões, desde o nível do mar até 6 mil metros de altitude, e mata animais aquáticos, terrestres e anfíbios. Pode disseminar-se tanto a partir da perna de uma rã como das penas de uma ave ou das botas enlameadas de um ser humano. Já provocou o desaparecimento de pelo menos 200 espécies. Em condições naturais, não se encontram mais sapo-dourado da Costa Rica (Bufo periglenes), a rã-dourada panamenha (Atelopus zeteki), o sapo Bufo baxteri e a rã australiana Rheobatrachus, entre outros. Cientistas preferem minimizar a importância de um fator isolado nos declínios demográficos. Porém, em artigo de 2007, o pesquisador australiano Lee Berger e seus colegas, os primeiros a apontar a responsabilidade do fungo, colocaram a questão assim: "O impacto da quitrídia nas rãs é, em toda a história, o mais espetacular declínio da biodiversidade entre os vertebrados causado por doenças".

A situação é tão desesperadora que levou à adoção de medidas radicais. Por exemplo, depois que, no final da década de 1990, constataram-se declínios demográficos associados ao fungo na Costa Rica e no Panamá, a pesquisadora Karen Lips começou a rastrear as rotas de difusão da quitrídia e prever suas vítimas futuras. Na virada do século, equipes estavam recolhendo animais das espécies mais vulneráveis. As rãs foram tratadas e postas em quarentena. Muitas foram enviadas a zoológicos nos Estados Unidos, ao mesmo tempo que no Panamá era construída uma instalação para abrigar quase um milhar de espécimes. Assim teve início o projeto Amphibian Ark (Arca dos Anfíbios), iniciativa internacional com o objetivo de manter ao menos 500 espécies em cativeiro até que a crise seja solucionada e elas possam ser levadas de volta a seu hábitat.
Hylomantis lemur
No zoológico de Atlanta. Geórgia.
Até 50 MM - América Central - À Beira da Extinção.
Os trópicos, onde as condições propiciam a maior biodiversidade dos anfíbios, registraram as quedas mais acentuadas entre as populações. Mas os climas mais temperados não foram poupados. Um exemplo é a região alta e fria da serra Nevada, na Califórnia. Ali, na área de Sixty Lake Basin, a 3,4 mil metros de altitude, há um agreste paraíso de torres de granito que se tornou famoso graças às fotos de Ansel Adams e cujos lagos antes fervilhavam no verão com vigorosas populações de rãs. A espécie mais comum na região é a Rana muscosa - de beleza sutil, com um tom amarelado no corpo e nos membros e manchas pardas e negras. Mas essa rã, do tamanho da palma da mão, tornou-se escassa.

Biólogo da Universidade Estadual de San Francisco, Vance Vredenburg estuda a Rana muscosa há 13 anos nos 80 lagos que monitora. Hoje, ele examina dez rãs mortas, com os membros rijos e os ventres esbranquiçados amolecendo ao sol. "Pouco tempo atrás, quando a gente caminhava à beira deste lago", lembra-se, "a cada passo via uma rã pulando. Havia centenas delas, saudáveis, tomando sol em uma multidão fervilhante." Mas em 2005, quando o biólogo voltou para outra temporada de estudo, "havia rãs mortas por toda parte. Rãs que eu vinha observando por anos, nas quais eu colocara etiquetas. Sentei-me no chão e chorei."

A maior população remanescente entre as pesquisadas por Vredenburg, no lago de número 8, conta cerca de 35 espécimes adultos. Quase todos os outros animais desapareceram. O que ocorreu é um bom exemplo daquelas sequências de golpes - um estudo de caso do modo como uma espécie florescente pode ser nocauteada.

Tudo começou com a truta.

Até o fim do século 19, quase não havia peixes na serra Nevada acima das quedas d'água. Mas a introdução de peixes acabou chegando às partes mais altas da serra com o objetivo de fazer daqueles lagos "estéreis" um paraíso para os pescadores. Trutas eram levadas para cima dos penhascos, primeiro em barris no lombo de mulas e depois, na década de 1950, em aviões cargueiros. Mais de 17 mil lagos receberam peixes. O problema é que as trutas comem os girinos e os filhotes de rãs. Por isso, enquanto as trutas se multiplicavam, as rãs foram desaparecendo.


O trabalho de Vredenburg em Sixty Lake Basin virou uma tentativa de eliminar os peixes a fim de estimular o retorno das rãs. Ele estendia redes de uma margem à outra, recolhia os peixes e lhes dava um destino (muitas vezes assando-os na grelha). Mais tarde, o Serviço Nacional de Parques assumiu o projeto, e hoje 14 lagos estão livres de trutas. Conforme os peixes eram retirados, conta Vredenburg, as "rãs começaram a recolonizar os lagos e estes voltaram à vida".


Mas aí veio outro golpe. A quitrídia, que invadira o Parque Nacional de Yosemite, chegou a Sixty Lake Basin e saltou de um lago para outro, uma centena deles, de maneira previsível e fatal. Depois de eliminar os peixes e recuperar o hábitat das rãs, "ver essa doença dizimá-las de novo é algo muito desanimador", diz Vredenburg.


Curiosamente, o fungo infecta mas não mata os girinos. Por isso, dá para ver seus cardumes em lagos que não apresentam nenhum outro sinal de vida. A Rana muscosa leva seis anos para ficar adulta. "Esses girinos são de anos atrás - não houve mais reprodução nesse lago desde a chegada da quitrídia", explica Vredenburg. "Eles morrem assim que se transformam em rãs."


Apesar de tudo, Vredenburg permanece otimista. Ele considera o lago de número 8 sua grande vitória. Quando notou que as rãs começaram a morrer, recolheu alguns espécimes adultos, tratou-os com um medicamento antifúngico e os devolveu à água. A população - ainda que ínfima - se mantém estável há três anos. Vredenburg pretende aplicar esse método trabalhoso - captura, tratamento e devolução - em outras lagoas da área de Sixty Lake Basin. Se uma certa quantidade de esporos fúngicos forem eliminados dos corpos dos animais, diz ele, "a doença pode se tornar menos virulenta".


E há notícias boas vindas também de outros locais. Alguns anfíbios não são afetados pelo fungo ou conseguem tolerá-los sem grandes danos. No Brasil, que possui a maior diversidade de anfíbios do mundo, com quase 800 espécies, há apenas um registro do fungo, em um sapo da Mata Atlântica - onde a pior causa de desaparecimento de espécies ainda é a falta de hábitat. "Mas o fungo ainda não apareceu na Amazônia", diz o herpetólogo Marinus Hoogmoed, do Museu Paraense Emílio Goeldi. Certas rãs arborícolas da Costa Rica possuem pigmentos na pele que lhes permitem aquecer-se ao sol sem ficar ressecadas, matando os fungos com o calor. E, o que é mais animador, Reid Harris e seus colegas da Universidade James Madison encontraram uma defesa inata em salamandras e algumas espécies de rãs: bactérias de pele simbióticas que inibem a infecção por quitrídia. Certas proteínas naturais da pele delas exibem propriedades similares de combate ao fungo. "Se conseguirmos aumentar a quantidade de bactérias boas de modo a refrear a disseminação do fungo, talvez haja tempo para os animais desenvolverem sua própria imunidade", aponta Harris.


Os projetos prestes a ser iniciados no âmbito da Arca dos Anfíbios talvez ajudem os cientistas a verificar a eficácia dessas medidas. No Panamá, a quitrídia só recentemente cruzou o canal e começou a rumar para leste, na direção da ainda intocada província de Darién, onde se conhecem pelo menos 121 espécies de anfíbios. Um local para resgate foi construído e está em funcionamento; em uma parceria de instituições americanas e panamenhas, outra dessas instalações está sendo projetada - para servir em parte às pesquisas sobre a melhor maneira de estimular a produção de micro-organismos saudáveis na pele dos anfíbios, de modo a interromper a propagação do fungo. Se essa estratégia for bem-sucedida, a rã-dourada, por exemplo, poderia retornar às florestas do Panamá. No Equador, outro país rico em espécies de rãs, Luis Coloma e Santiago Ron solicitaram às autoridades um estudo do impacto ambiental da construção da estrada na área de Limón. Por enquanto, a obra foi interrompida e, nesse ínterim, é possível tentar a recuperação de alguns hábitats.


Por que tanto cuidado com as rãs? "Eu poderia enumerar centenas de motivos", resume Coloma. Entre eles: a pele funciona não apenas como barreira protetora, mas também como pulmão e rim, e esse é um excelente mecanismo de alerta para a presença de poluentes. Uma vez que os insetos de que se alimentam transmitem patógenos humanos, as rãs são nossas aliadas contra as doenças. E servem de alimento para serpentes, aves e até seres humanos, desempenhando um papel crucial em ecossistemas terrestres e de água doce.


"Não se trata apenas das rãs", completa Vredenburg. "O que importa é que há uma doença nova se propagando e temos de nos precaver, de aprender a lidar com coisas que não entendemos e enfrentá-las. Todo mundo deveria se preocupar. É algo que diz respeito a todos nós."



Autora:
Jennifer S. Holland. Publicado na National Geographic Brasil. Edição 109 em 2009

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