segunda-feira, 5 de abril de 2010

Quanto Mais Quente Melhor

A Víbora-Anã (Bitis peringuey) espreita suas vítimas perfeitamente camuflada - só os olhos e a boca, de coloração adaptada ao ambiente, estão de fora da areia. A serpente, de apenas 30 centímetros, absorve praticamente todo o líquido de que precisa através de suas presas.


O Namibe, um mar de areia da Namíbia, sudoeste da África, é o mais antigo deserto do mundo - e um dos lugares mais inóspitos. Ali sobrevivem - nas condições mais extremas - apenas animais e plantas adaptados graças a engenhosos processos milenares
Por Katja Trippel (TEXTO) e Solvin Zankl (FOTOS)












A Aranha-camelo (ordem: solifugae) consegue caçar até pequenos répteis com suas terríveis mandíbulas. De que ela tem de se proteger é revelado em seu nome latino: solifugae significa "que foge do sol".







O Gecko-Da-Namíbia (Palmatogecko rangel) desponta à noite nas superfícies das dunas, onde caça aranhas e gafanhotos. Seus imensos olhos lhe permite detectar as presas na penumbra.











Deadvlel (vale da morte, no idioma africânder): a paisagem surreal se estende pelas dunas vermelhas. No passado, o Tsauchab irrigava a depressão argilosa, deixando árvores florescerem. Mas o rio procurou um novo curso, e os troncos aqui já secaram a séculos. Foram transformados em esqueletos negros mumificados pelo sol escaldante.


O dia em que a água chega transforma o Gobabeb. Fazia semanas que as nuvens escuras tinham se amontoado a distância, sem chegar mais perto dessa estação de pesquisas. De repente, no fim de janeiro, as primeiras gotas de chuva caem no ressecado leito do Rio Kuiseb, um dos mais caudalosos da Namíbia. Dez dias depois, bem na hora do chá dos pesquisadores, uma voz ecoa do aparelho de radiocomunicação, com o qual a estação mantém contato com vilarejos próximos: "Atenção Gobabeb", chama a voz, "Enchente! Enchente!". Poucos minutos depois, a primeira torrente de água surge no leito do Kuiseb: um caldo marrom, até a cintura, cheio de detritos. Jubilantes, todos - catedráticos e técnicos - se precipitam na água. É a primeira água nesse rio do deserto em mais de dois anos.
Desde esse dia, os desgrenhados arbustos- anões, as acácias e os tamarindos florescem às margens; e após mais algumas fortes chuvaradas, o deserto fica recoberto por um delicado tapete verde. Na areia macia das dunas, que se estendem ondulantes do leito do rio até o Atlântico, despontam moitas de capim. Também elas irrompem no meio do pedregulho dos campos de pedras, os quais se estendem a perder de vista em direção nordeste. Como se surgissem do nada, antílopes e gazelas órix passam pelo Gobabeb para pastar e, ao lado das WWelwitschia mirabilis (espécie endêmica sem nome vulgar) de até 2 mil anos, surgem os primeiros brotos dessas plantas em 20 anos. Até mesmo os experientes cientistas estão surpresos com a quantidade.

O Gobabeb, que no idioma dos nativos namas significa "lugar da figueira", é a única estação de pesquisa de desertos do mundo habitada o ano todo. Em 1959, durante uma expedição, o coleopterologista (pesquisador de besouros) vienense Charles Koch identificou esse local às margens do Kuiseb como ideal para um laboratório a céu aberto. Logo em seguida, a pedido do governo sul-africano do protetorado, o Gobabeb foi criado para explorar aquele meio supostamente hostil à vida que parecia ser o Namibe. No entanto, quanto mais os anos passavam e quanto mais intensamente Koch e seus colegas cavavam nas areias, interpretavam rastros, viravam pedras e pedregulhos, mais vida eles descobriam. Líquens, aranhas e cupins, camaleões e cobras. Até toupeiras, chacais e mais de 200 espécies de besouro.

Há muito tempo, o acampamento de barracas no Kuiseb se transformou em um pequeno núcleo habitacional, com o edifício de pesquisa, casas, quadra de tênis, instalações de energia solar. A equipe, internacional, às vezes reúne apenas cinco, outras vezes até 30 pesquisadores. Além disso, mais de mil alunos e estudantes universitários vêm anualmente para cá a fim de conhecer as bases da ecologia do deserto. Em quase 50 anos, foram publicados 1.800 trabalhos. Graças ao Gobabeb, o deserto da Namíbia, ou Namibe, hoje não só é tido como o deserto extremo mais bem examinado da Terra como também o mais rico em espécies.

E isso apesar de suas condições de vida nada ideais: sol escaldante de manhã à noite, com temperaturas que não raro chegam a quase 50 graus centígrados. A média anual de precipitação é inferior a 100 milímetros, e as noites podem ser geladas. Condições extremas - mesmo para pesquisadores. O supermercado e a torre de comunicação para celulares mais próximos ficam a mais de quatro horas de carro, por pistas de cascalho. Mas seria quase impossível encontrar um lugar melhor do que aqui, longe de todas as perturbações humanas, para pesquisar a interação entre a paisagem, a fauna e a flora

"No deserto sobrevive aquele que evita o deserto." Com essa frase, Joh Henschel, diretor e chefe de pesquisa do Gobabeb, descreve o segredo do Namibe. Pois, assim como ele se move apenas lentamente pelos escritórios, pensa melhor na frente de um ventilador e bebe tanto chá quanto possível, todo habitante do deserto desenvolve sua própria estratégia para deixar o tempo passar da forma mais suportável. Evitar o calor, que faz o horizonte tremeluzir, encontrar nichos com um microclima agradável, aproveitar cada gota de água - por dias, meses ou até anos, de acordo com um horizonte temporal específico para cada espécie. As moitas de capim do gênero Stipagrostis, da família Poaceae, por exemplo, que conferem às cercanias do Gobabeb seu brilho esverdeado após as chuvas, seriam imediatamente queimadas pelo sol se não tivessem reservas de umidade em suas raízes. Sem problemas, suas sementes desafiam durante meses o calor e a radiação, para em poucos dias começar a brotar e crescer.

Uma estratégia de sobrevivência semelhante é seguida por conformações estranhas, surgidas do chão entre as moitas de capim e parecidas com marshmallows marmorizados. Trata-se das folhas esturricadas de água das "pedras vivas". A partir de maio, elas produzem flores amarelas ou brancas que pontilham o Namibe com reluzentes manchas de cor. Também suas cápsulas de sementes são capazes de sobreviver durante anos, antes que uma chuva desencadeie um complexo mecanismo: fazê-las abrir-se e disseminar centenas de sementes.

No reino animal, algumas espécies esperam pacientemente o momento certo na época das chuvas, para se mostrar em Gobabeb - nem sempre os zoólogos sabem como eles determinam esse exato momento. Poucos dias depois de seus banhos nas torrentes do Kuiseb, pesquisadores descobrem em uma poça d'água minúsculos crustáceos recém-nascidos, chamados "Branquiópodes". Essas criaturas devem ter esperado, ainda dentro do ovo, pelo menos dois anos pela próxima enchente, enfiados entre as placas de barro que se formaram no leito do rio durante a estiagem. E nas margens, em meio ao florescente matagal, surgem de repente agitadas e barulhentas cotovias-das-dunas- vermelhas. Joh Henschel especula se também desta vez haverá hienas-pintadas espreitando os antílopes. No final da década de 70, com muito mais umidade do que a média, o ecologista alardeou a presença desses predadores, mas nunca mais os viu desde então.

Em contraste com alguns visitantes animais sazonais, a maioria das espécies do deserto conduz seu esconde-esconde do sol durante todo o ano. Líquens, cogumelos e diversas plantas de folhas suculentas progridem na sombra de rochedos, embaixo de árvores, ou em fendas nas pedras. Habitantes do deserto, como besouros e lagartixas, mergulham rapidamente na areia quando o solo fica muito quente para eles durante o dia, ou muito frio durante a noite. Já as víboras-anãs se locomovem em seus típicos movimentos ondulantes laterais, preferencialmente debaixo de detritos - pedaços secos de folhas e gramíneas trazidos pelo vento e acumulados em depressões entre as dunas ou embaixo de arbustos que lhes fornecem sombra e camuflagem ao mesmo tempo. "Granola para besouros", brincam os ecologistas: esses detritos de plantas estão no topo da cadeia alimentar dos animais do Namibe, compondo a base da diversidade.

Os detritos alimentam pelo menos dez espécies diferentes de tisanuros, juntamente com as larvas que, graças às bactérias especiais em seu sistema digestivo, conseguem digerir celulose sem problemas. As larvas são presas de besouros e aranhas, ambos devorados por lagartos e lagartixas, os quais, por sua vez, acabam no estômago de cobras ou raposas.

Jaimie Adelson, uma jovem americana que leciona ecologia do deserto no Gobabeb, sabe exatamente onde e quando tem a melhor chance de encontrar os especialistas do deserto. Ao amanhecer, ela atravessa o Kuiseb e sobe na duna que se projeta como uma gigantesca onda de proa atrás da estação de pesquisas. Ela se senta no topo, de onde consegue ler na fina areia, como se fosse um jornal, tudo o que se passou ali durante a noite. A fina linha rastejada, por exemplo, é de umLepidochora kahani: o besouro preto e marrom, que parece um botão achatado, só sai da areia na escuridão a fim de cavar um sulco na superfície da duna, em direção paralela à do vento. Se uma onda de névoa fresca sopra do Atlântico, como é frequente na região do Namibe, gotículas de água se depositam no sulco e o besouro as sorve.

O Onymacris unguicularis, popularmente chamado de "capta-névoa", adaptou- se ainda mais engenhosamente ao clima. No frescor da noite, o besouro sobe até a crista da duna e fica de ponta-cabeça, com as patas estendidas para cima. Quando passa uma nuvem carregada de umidade, minúsculas gotas de água batem em suas costas e deslizam para baixo nas ranhuras de sua couraça de quitina - direto para sua boca. Dessa forma ele consegue aumentar seu peso em cerca de 40% em uma noite. Os pesquisadores do Gobabeb realizaram este cálculo em um experimento curioso: pesaram centenas de "capta-névoas" antes e depois de os besouros ficarem de ponta-cabeça. Se compararmos a capacidade de beber do besouro com a de um humano como Jaimie Adelson, veremos que ela precisaria ingerir 20 litros de uma só vez. Impossível, já que ao ser humano falta o tanque-reserva no abdômen, onde o Onymacris armazena suas reservas.

Um rastro mais largo termina na encosta da duna em um montículo despretensioso. Adelson enfia a mão nele e segura um animalzinho magro entre os dedos: um Palmatogecko rangei, pequena lagartixa com olhos enormes, pele quase transparente e uma espécie de membrana- nadadeira entre os dedos - aparentemente um equipamento inapropriado para a vida no deserto. Mas a natureza jamais erra. A caçadora de besouros mira sua presa escondida debaixo da areia. As membranas impedem que o besouro afunde, e sua longa língua funciona como limpador de para-brisa para os olhos, mantendo-os limpos. Quando uma refeição em potencial passa por perto, a língua se projeta rapidamente para frente e o geco se enterra de novo na areia - agora as membranas funcionam como rodas de escavação. E como os mamíferos escapam do calor do deserto? Jaimie Adelson sabe que a raposa-do-cabo, por exemplo, sai preferencialmente à noite para caçar outros mamíferos ou frutos.

Quando não consegue chegar até sua toca diurna antes de o sol raiar, suas grandes orelhas deflexionam o calor e seu pelo claro reflete o sol. Os esquilos terrestres usam sua própria cauda como guarda-sol. As gazelas órix, incapazes de se enterrar ou de fazer sombra para si próprias, razão pela qual chegam a uma temperatura corporal de 45 graus centígrados, têm um complexo sistema de refrigeração. Quando sangue quente demais flui do coração para o cérebro, o órix respira mais rápido e o sangue mais frio que passa pela membrana mucosa das narinas corre como uma espiral de refrigeração ao redor das artérias com o sangue quente.

Comparada com esse prodígio de sofisticação, a regulagem térmica usada pelos pesquisadores do deserto chega a ser tosca: roupas claras, chapéus, cantis. Mas o diretor do Gobabeb, Joh Henschel, é otimista: "A evolução há de desenvolver algo adequado para nossa espécie", diz ele sorrindo.


Autor: Katja Trippel. Publicado na Revista GEO. Edição 04 em 2009.

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