sábado, 3 de abril de 2010

A Vida no Fio da Navalha

Selva de Pedra de Madagáscar abriga algumas das espécies mais estranhas da ilha - desde o sifaka-de-decken, um lemurídeo, até uma multidão de répteis e insetos.


A Floresta de Pedra de Madagáscar
Por Neil Shea

O lagarto move-se assustado na pedra fustigada pelos raios solares. Alguns passos rápidos. Em seguida, a imobilidade de uma criatura que se dá conta de estar sendo perseguida. Ao redor, agulhas e colunas denteadas erguem-se como as torres de uma catedral gótica, silenciosa e vazia. Desde as ravinas lá embaixo, um papagaio alça voo e lança um guincho agudo, rompendo o êxtase. O lagarto corre. Com um movimento rápido, Hery Rakotondravony estende o braço. Logo depois o jovem herpetólogo abre a mão.

"Acho que é uma espécie nova."

Estamos há poucos dias no Parque e Reserva Nacional Tsingy de Bemaraha, em Madagáscar, e essa é a segunda ou terceira ocasião em que ele diz a mesma coisa. Em uma ilha famosa pela biodiversidade (90% de suas espécies são endêmicas, proporção de nenhum outro lugar do planeta), os 1 550 quilômetros quadrados de área protegida constituem uma ilha dentro da ilha, espécie de biofortaleza agreste, inexplorada e quase impenetrável, devido à maciça formação de calcário - o tsingy - que atravessa o parque.
Uma cidade de torres de calcário avulta no oeste de Madagáscar, com bairros cortados por cânios e dotados de porões cavernosos.

O grande bloco de rocha jurássica dissolveu-se irregularmente e tornou-se um labirinto de torres com bordas afiladas, cânions estreitos e cavernas úmidas que afastam humanos e fornecem refúgio para animais e plantas. Com freqüência, são catalogadas novas espécies isoladas no interior da floresta de pedra. Até animais de maior porte foram achados em épocas recentes, como um lêmure de pernas longas em 1990.

O biólogo Steven Goodman, que viveu e trabalhou em Madagáscar por duas décadas, descreve a região como um "refúgio no interior de um paraíso", um local em que ainda se pode praticar um tipo de biologia mais comum um século atrás - e onde uma caminhada pode colocar o pesquisador diante de criaturas jamais vistas. "Basta passar de um vale para outro para ver coisas diferentes", comenta Goodman. "As formações de tsingy em Madagáscar estão entre aqueles pontos do planeta que abrigam tesouros biológicos extraordinários."

Chegar lá é a parte difícil. Em março, quando acaba a estação das chuvas, pouco antes de as folhas começarem a cair e de o inverno secar os riachos, o fotógrafo Stephen Alvarez e eu atravessamos o parque, guiados por Rakotondravony. Essa é a sua quarta expedição pelo tsingy de Bemaraha - ele é um dos poucos cientistas que lá se aventuraram mais de uma vez.

Desembarcamos em Antananarivo, capital de Madagáscar, logo após o presidente ser derrubado por um golpe de Estado. Manifestações violentas ocorriam com intervalos de dias. O turismo, um dos pilares da economia local, quase se extinguiu. Saímos temerosos. Mas, avançando pelo interior, diminuem os sinais do golpe.

Levamos quase cinco dias para chegar ao tsingy. No terceiro, a estrada piora e vira um caminho de terra com sulcos profundos. Balsas nos transportam por rios avermelhados pelo solo lançado na corrente em consequência de desmatamentos erosivos mais acima. Os vilarejos se tornam menores, e os carros, escassos, ao mesmo tempo que a floresta se adensa.
Os raios de sol fustigam as alturas do tsingy, em que a chuva evapora ou escoa para os terrenos mais baixos. A aridez dos níveis superiores favorece criaturas móveis e plantas espinhosas, como as Pachypodium.

Perto de um vilarejo, entramos a pé por uma trilha que corta a floresta. Depois de meses de chuva, começa o longo período de seca, no qual criaturas ficam entorpecidas, esperando pelo retorno da umidade. Montamos nosso acampamento à margem de um regato límpido. Nossa cozinha é instalada sob o ressalto de um paredão rochoso que rompia o dossel da mata e, lá em cima, se divide e se fragmenta em agulhas, cristas e torres que dão o nome ao local.

Na língua malgaxe, tsingy quer dizer "lugar em que não se pode andar descalço", porém logo vimos que essa paisagem requer bem mais que botas resistentes. Em vários locais, tentamos fazer explorações usando apetrechos de montanhismo. Em vão, pois o tsingy esfacela com a mesma facilidade tanto o equipamento como a carne do explorador. Em outras oportunidades exploramos a pé o labirinto, seguindo as débeis trilhas deixadas por moradores da região que ali se aventuraram em busca de mel ou de lêmures.
Bandos de sifaka-de-decken encontrados apenas no oeste de Madagáscar percorrem o topo do tsingy em busca de alimentos - e para escapar dos predadores. Tal como outros lemurídeos, vivem em pequenos grupos familiares, possivelmente liderados por uma fêmea dominante.

Temos de nos espremer por passagens estreitas e incertas. Encontrar apoio para as mãos e os pés é uma tarefa que exige concentração. As rochas penetram em nossas botas, abrindo buracos na sola de borracha. Em geral chegamos a elevações aguçadas e em seguida temos de descer para camadas ralas de solo que recobrem outras áreas de rochas serrilhadas. É preciso todo o cuidado para manter o equilíbrio enquanto decidimos o que fazer a seguir.

Com muita sorte percorremos 1 quilômetro por dia - imagine atravessar uma cidade escalando todos os prédios. Isso mostra quão penosa é a pesquisa biológica na área. Porém, mesmo em distâncias menores, vimos centenas de animais e plantas, mais do que é possível identificar. Nos momentos calmos dá para imaginar locais do tsingy que jamais haviam sido visitados por seres humanos - e talvez nunca sejam.

Certa tarde, ao voltar de uma calorenta e úmida caminhada, tropeço em uma liana na trilha e firo o joelho direito numa pedra. A pedra é um tsingy em miniatura. Uma lasca de calcário penetra quase até o osso. São precisos dois dias para chegarmos a um hospital, onde uma enfermeira limpa a ferida. "O que você fazia lá?", indaga ela enquanto introduz um cotonete até o fundo do buraco. Ela ergue os olhos. Eu transpiro. "Acho que você não regula bem", diz.

Essas formações rochosas incomuns são um tipo de relevo cárstico, uma paisagem constituída de calcário poroso que foi dissolvido, erodido e modelado pela água. Os processos exatos que escavaram essas paisagens são complexos e raros; só se conhecem algumas poucas formações cársticas similares a essa em Madagáscar. Os especialistas acreditam que a água de lençóis freáticos tenha se infiltrado nos grandes leitos de calcário e começado a dissolvê-los ao longo de juntas ou fraturas, abrindo cavernas e túneis. O crescimento dessas cavidades subterrâneas fez com que suas coberturas desmoronassem nas mesmas juntas e falhas, criando ravinas de paredes abruptas, conhecidas como grikes, com até 120 metros de profundidade, guarnecidas de picos afilados de rocha. Alguns grikes são tão estreitos que uma pessoa mal pode passar por ali; já outros são largos como avenidas.

Quando contemplam do alto o tsingy, os pilotos costumam compará-lo aos profundos cânions urbanos de Manhattan. Essa metáfora também se aplica às estruturas do tsingy, pois as formações rochosas acabaram dispostas como fileiras de altos prédios, proporcionando abrigo para um conjunto de espécies em cada nível.

No topo das torres não há muito solo nem proteção contra o forte sol. Ali as temperaturas com frequência superam os 32ºC, e a fauna e a flora restringem-se a poucas espécies capazes de resistir ao dessecamento ou então de se mover entre as cristas e os cânions. Os lemurídeos usam o tsingy como uma auto-estrada, saltando de um pináculo a outro em busca de árvores frutíferas. Nas gretas e fissuras, os lagartos perseguem insetos entre jardins de xerófitos resistentes à seca, plantas cujas raízes longas e flexíveis crescem pelas rochas em busca de umidade.

Nos níveis intermediários do tsingy, outros nichos aparecem nos paredões dos cânions. Morcegos frugívoros e escuros papagaios-vasa ali se empoleiram e, nas sombras, as abelhas ancoram suas colmeias em buracos na pedra.

Mas é no leito úmido dos grikes, em que se acumulam a água e os sedimentos, onde se encontra a maior biodiversidade. Entre orquídeas e árvores de madeira de lei, vaga uma fauna variada, como caramujos gigantes e grandes camaleões. Também está o terror dos lêmures: o fossa (Cryptoprocta ferox), um mamífero musculoso de pele macia com garras retráteis e aspecto semelhante ao de alguns felinos. Por fim, debaixo do solo estão as grutas que compõem um sistema subterrâneo em que peixes, insetos e outras criaturas vivem, alguns sem jamais ir à superfície.
As pupilas verticais identificam um seseke, um geconídeo de vida noturna. Sua camuflagem é tão eficaz que ele nem precisa se esconder de dia, apenas se agarra a um tronco enquanto espera pela escuridão, quando sai para comer insetos.

Essa cidade murada protegeu seus moradores mesmo após a desintegração de todos os outros ecossistemas de Madagáscar. Por isso é considera pelos cientistas um refúgio perfeito.

Na biologia, o conceito de "refúgio" aplica-se a uma zona para a qual se mudam as criaturas quando encolhem seus hábitats. Nesses locais, animais e plantas vão se diferenciando de seus parentes mais próximos. A própria ilha de Madagáscar é um exemplo desse processo, tão incomuns são suas espécies em relação aos primos no continente africano. Os lemurídeos são os animais mais conhecidos. Seus ancestrais já viveram na África mas se extinguiram – hoje são encontrados apenas em Madagáscar. Sem a concorrência que os levou à extinção em outras partes, eles evoluíram e assumiram as formas mais diversas, incluindo uma espécie já desaparecida que tinha o porte do gorila, e outra, o Microcebus, tão pequena que cabe na palma de nossa mão e é o menor primata existente.

O tsingy também proporciona refúgio em escala menor. Protegida pelas muralhas de pedra e umedecida pelas chuvas sazonais, a floresta em seu interior é distinta da savana de palmeiras que a circunda a leste e também das áreas costeiras que a flanqueiam a oeste. Ela é uma relíquia.

Desde que os primeiros seres humanos desembarcaram em Madagáscar, há 2,3 mil anos, quase 90% do hábitat original foi destruído, a maior parte desmatada para a extração de madeira e queimada para o cultivo agrícola e a pecuária. Em consequência, estima-se que muitas das espécies endêmicas tenham se extinguido.

Na região oeste, o tsingy isolou um extenso trecho de floresta. As formações rochosas servem de obstáculo para o avanço do povoamento humano e dos rebanhos de gado. O tsingy também atua como barreira contra fogo, preservando a mata de incêndios - tanto os espontâneos como os de origem humana.

"Bemaraha tem populações animais e vegetais pouco comuns porque a área circundante foi alterada, seja pelos seres humanos, seja por mudanças no clima", comenta Brian Fisher, da Academia de Ciências da Califórnia.

Em uma manhã abafada, Rakotondravony e eu exploramos a pé a densa mata que recobria o fundo de um grike. No caminho topamos com um enorme formigueiro. O ar ao redor está pegajoso, com cheiro de porão úmido, e desde o interior da ravina e da floresta paira um ritmo naquele ar, entre algo ouvido e sentido - o zumbido incessante de 1 bilhão de asas de insetos.

Rakotondravony mostra-me diversas plantas, entre as quais árvores com copas esguias e parecidas com palmeiras. Essas árvores, explica, eram outro tipo de hóspede que havia achado um lar improvável nas estreitas ravinas do tsingy. Era uma espécie comum nas matas úmidas do leste, mas quase não se viam na região oeste, bem mais seca. Somente ali, no fundo dos grikes, aquelas árvores haviam escapado ao sol causticante e aos incêndios florestais. Há também certas rãs, diz ele, cujos parentes mais próximos vivem a uma distância de centenas de quilômetros. O terreno difícil cria refúgios restritos, em que criaturas parecem ter evoluído em maior isolamento, que abrangem apenas alguns cânions do tsingy.

Brian Fisher já fez três visitas para entender como esses refúgios se formaram e como modelaram as criaturas dali. Por análises de DNA, ele compara as formigas do tsingy com as da região leste de Madagáscar com o propósito de determinar o momento em que as formigas, e as florestas, ficaram isoladas. Os resultados vão dar indícios da maneira como os animais evoluem depois que perdem o contato com outras populações e como reagem a mudanças climáticas: se apenas recuam aos refúgios ou se desenvolvem novas características. As respostas a essas questões, segundo Fisher, poderiam ter implicações no futuro à medida que as atividades humanas reduzem os hábitats e alteram o clima.

Pelo fato de ser remoto e impenetrável, parece menos provável que o ecossistema do tsingy seja mais prejudicado pelo desenvolvimento que por mudanças no clima. Redução no nível de umidade, queda nas precipitações, aumento na acidez das chuvas - qualquer fator poderia prejudicar as florestas e as próprias formações rochosas. “Eu me pergunto por quanto tempo essas relíquias florestais vão sobreviver", comenta Fisher. "Elas poderiam desaparecer num prazo bem curto. É uma fortaleza, mas não é invulnerável."

Em um de meus últimos dias no tsingy, subo a uma plataforma de observação, de onde posso contemplar a imensidão de agulhas e cristas rochosas. O mirador fora construído para os turistas, mas eles já não vinham mais, assustados com o golpe. Essa não era uma situação boa para o parque: metade de seu orçamento vem das taxas pagas ao turismo. Em abril de 2008, 147 pessoas haviam conhecido o tsingy de Bemaraha; neste ano, no mesmo mês, já depois do golpe, o número caíra para 12 visitantes.

Não muito longe dali, um bando de sifakas pula de um pináculo a outro, saltando as ravinas e caindo sobre afiadas lâminas rochosas. Com pelo branco brilhante, esses lemurídeos mais parecem criaturas polares perdidas nos trópicos. Eles se deslocam por uma das paisagens mais inóspitas do mundo como se as leis físicas nada significassem, como se elas nada mais fossem que argumentos elaborados por criaturas menos ágeis para justificar a própria inépcia.

Os sifakas somem assim que cai a noite. Papagaios cruzam o céu, passando por morcegos imensos. Nas ravinas embaixo, a mata
se achata em uma mancha cinzenta. Descemos da plataforma e seguimos para o acampamento, iluminando a trilha entre as árvores com as lanternas de cabeça. Milhares de olhos reluzem na escuridão como joias alaranjadas e verdes. São os olhos dos lêmures noturnos encontrados apenas aqui, das lagartixas com pele tão lisa e iridescente como a de uma truta, das grandes aranhas e mariposas com corpo fino como sombra. A própria noite se torna um refúgio, uma espécie de continente provisório, envolvendo a cidade de pedra e todos os seus habitantes, tanto os conhecidos como os ainda incógnitos.


Autor: Neil Shea. Publicado na National Geographic Brasil. Edição 116 em 2009

Um comentário:

  1. Parabéns pelo post. Muito legal. Realmente um lugar muito lindo, cheio de animais fantásticos... obrigado.

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